A sociedade assiste estarrecida aos casos de corrupção divulgados na imprensa sobre desvios de recursos públicos. Cada nova denúncia abala a crença da população nas instituições e no futuro do Brasil. A Operação Lava Jato tem revelado que a corrupção é sistêmica, pois ocorre de forma organizada e ramificada, envolvendo governantes, servidores públicos e empresários em todo País.
Os recursos dos orçamentos da União, dos Estados e dos municípios, que deveriam estar sendo destinados à saúde, educação, infraestrutura e outros serviços essenciais para atender à população, são extraviados em esquemas bilionários de fraudes em licitação, propinas e superfaturamento de obras públicas.
Muitos empresários e empresas que aparecem envolvidos em esquemas de corrupção junto ao poder público federal, também desenvolvem suas atividades empresariais em órgãos estaduais e municipais. É o caso das empreiteiras que realizaram obras públicas.
As investigações dos crimes de corrupção quando envolvem instituições, verbas e agentes públicos federais são de atribuição da Polícia Federal, cabendo às polícias civis investigar esses crimes no âmbito dos Estados. Mas por que vemos tantas operações policiais contra a corrupção realizadas pela PF e tão poucas pelas polícias civis estaduais?
A estrutura administrativa dos Estados é pelo menos 26 vezes maior em relação à União Federal e nessa proporção poder-se-ia projetar possíveis ocorrências de casos de corrupção, mas os números de investigações estaduais para esses crimes é muito pequeno.
Somente no Poder Executivo estadual existem inúmeras secretarias e órgãos, como fundações, institutos, companhias de água, energia, habitação, transportes, etc. Há ainda a estrutura dos poderes legislativo e judiciário estaduais, suas atividades e servidores.
A Operação Calicute, deflagrada no ano passado pela PF, prendeu o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, por cobrança de suborno em contratos de obras realizadas pelo governo do Estado, cujos prejuízos são estimados em mais de R$ 224 milhões. No desdobramento, a Operação Eficiência prendeu o empresário Eike Batista, acusado de ter pagado suborno de US$ 16,5 milhões a Sérgio Cabral, em contas no exterior.
A PF também deflagrou a operação Anteros, que investiga o governador do Rio Grande do Norte, Robinson Faria e servidores estaduais, pela prática dos crimes de organização criminosa e obstrução de Justiça. Já na Operação Ápia, a PF investigou desvios de recursos públicos de obras no Tocantins, envolvendo governador, ex-governador do Estado e o procurador-geral de Justiça.
Algumas investigações importantes vêm sendo realizadas pelas polícias civis, como a Operação Sodoma, que combateu um esquema de fraudes à licitação, desvio de dinheiro público e pagamento de propinas em Mato Grosso, envolvendo o ex-governador Silval Barbosa, além de três secretários estaduais. Em Santa Bárbara (MG), os policiais civis prenderam o presidente da Câmara Municipal e outros 11 vereadores, por acusação de fraude e desvio de verbas no Legislativo da cidade.
Há outros exemplos de importantes investigações contra a corrupção nos Estados e municípios deflagradas pelas polícias civis, mas, em geral, têm pouca expressividade em relação ao volume de crimes análogos apurados pela PF. Estariam os Estados mais imunes aos crimes de corrupção ou faltam ações de fiscalização e investigação para apurá-los?
Crimes de corrupção e assemelhados
O crime de corrupção está definido no Código Penal tanto para o corruptor, quanto para o que se deixa corromper. Aquele que oferece dinheiro ou vantagem ao agente público para obtenção de benefício ilegal na administração pública comete o crime de corrupção ativa (art. 333) e o agente público envolvido, incorre no crime de corrupção passiva (art. 317).
Outros crimes relacionados ao desvio de recursos públicos também vêm sendo chamados de forma genérica de crimes de corrupção, tais como os crimes de emprego irregular de verbas públicas, fraude em licitação, falsificação de papéis públicos, lavagem ou ocultação de bens oriundos de corrupção e a improbidade administrativa, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Todos esses crimes são normalmente perpetrados por organização criminosa, que é quando ocorre associação de quatro ou mais pessoas, que se organizam e dividem as tarefas para a prática de crimes. Muitas vezes com a participação de agentes públicos no desvio dos recursos públicos.
Órgãos de fiscalização e controle, como tribunais de contas e ministérios públicos, têm competência para desenvolver ações de fiscalização, supervisão e investigação em defesa do patrimônio e do erário público. Tanto no âmbito federal quanto estadual, quando detectam indícios de crime, esses órgãos enviam representação para a investigação pela Polícia Federal ou Civil, respectivamente.
A partir da análise dos elementos contidos na notícia-crime desses órgãos é que os policiais desenvolvem as investigações, que incluem análise documental e da movimentação contábil, fiscal e financeira, além de acompanhamento de ações suspeitas dos investigados.
A atuação integrada da polícia com os órgãos de fiscalização e controle é fundamental para a obtenção dos elementos fundamentais à investigação dos crimes. Os dados obtidos são criteriosamente cruzados e confrontados pelos investigadores, a fim de se comprovar a materialidade delitiva. Sem essa integração não se consegue avançar nas investigações e futura responsabilização dos envolvidos.
Às vezes, porém, até os agentes públicos dos órgãos de controle e fiscalização estão envolvidos em casos de corrupção. Foi o que apurou a Operação Pelicano, que desbaratou esquema de corrupção envolvendo 72 auditores fiscais que integravam uma organização criminosa, composta por mais de 300 pessoas, que atuava na Receita Estadual em Londrina (PR). Já a operação Malebolge da PF atingiu o alto escalão do Tribunal de Contas de Mato Grosso, com vários Conselheiros sendo investigados por desvio de dinheiro público e lavagem de dinheiro.
Os crimes de corrupção, diante das suas complexidades, exigem dos policiais competência e expertise especializada, uso de técnicas e recursos tecnológicos avançados. O emprego da inteligência policial é fundamental para analisar e definir com precisão a rede de conexões e todas as nuances desses crimes.
É o elemento humano o fator mais importante para o sucesso da investigação policial, pois a conduta, procedimentos, conhecimentos e experiência profissional definem os caminhos e os resultados a serem alcançados. Torna-se essencial um efetivo policial dedicado integralmente às investigações de corrupção, cuja conclusão pode durar meses.
A investigação criminal nos Estados
Sobra competência às polícias civis para atuar na investigação dos crimes de corrupção, pois contam com exímios e experientes investigadores de vários tipos de ilícitos penais. Mas falta a estrutura e organização necessárias para reprimir essa modalidade de crime nos Estados e municípios.
Nos Estados é atribuição das polícias civis exercer funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, enquanto que às polícias militares cabem atividades de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, de acordo a com a Constituição Federal (art.144, §4º e 5º). Já a Polícia Federal atua em “ciclo completo”, realizando tanto a prevenção quanto a investigação de crimes (art.144, §1º), diferencial significativo que implica em maiores resultados nas apurações criminais pela PF.
As polícias civis atuam primordialmente na investigação dos crimes já ocorridos. Estão organizadas em delegacias de polícia, onde a atividade precípua é a lavratura de boletins de ocorrência e de autos de prisão em flagrante, em sua maioria apresentados pela Polícia Militar, em volume cada vez maior, diante do aumento crescente da violência urbana.
A estrutura precária das delegacias civis e a falta de efetivo policial dificultam a investigação até dos casos corriqueiros registrados diariamente. Some-se a isso, que as investigações são prejudicadas pela burocracia e formalismo excessivos do inquérito policial, com seus despachos e carimbos, que impedem a celeridade e eficiência das investigações. Muitos inquéritos prescrevem na delegacia.
Há delegacias especializadas de combate a crimes contra a administração pública na maioria das polícias civis dos Estados. Alguns até criaram unidades policiais especializadas de combate à corrupção. Mas em todas a estrutura é limitada e existe unicamente nas capitais, e por isso atuam em casos restritos.
Na prática, essas unidades especializadas não possuem estrutura mínima de equipamentos, recursos tecnológicos e pessoal para uma atuação exclusiva, permanente e sistemática de repressão aos crimes de corrupção em todo o Estado e municípios. Diante dessa realidade, acabam por selecionar os casos a serem investigados.
Inevitavelmente, o resultado das apurações muitas vezes compromete gestores e agentes públicos estaduais, com reflexos nos interesses políticos e administrativos de governantes, aos quais estão subordinados. Por isso, a vinculação direta dessas unidades aos governantes estaduais, que define e organiza os recursos humanos e materiais dessas delegacias, restringe a liberdade e a autonomia dos investigadores.
Os baixos índices de investigações contra a malversação de verbas estaduais e municipais ocorre principalmente pela falta de vontade política. É preciso transparência na gestão pública e fiscalização constante do cidadão sobre os gastos públicos.
Os crimes de corrupção são graves atentados à democracia, comprometem a estabilidade do País e a vida dos brasileiros. Para combatê-los efetivamente é preciso estruturar os órgãos policiais, bem como integrá-los em nível nacional para uma ação coordenada, articulada e permanente, em todos os entes da federação.
*Magne Cristine Cabral da Silva é advogada, pós-graduada em Direito Público e especialista em Execução de Políticas de Segurança Pública. É bacharel em Direito e Administração de Empresas. É escrivã da Polícia Federal aposentada, diretora de Comunicação da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) e da Ordem dos Policiais do Brasil (OPB). Tutora em ensino à distância da Academia Nacional de Polícia Federal.
Fonte: Estadão