Os ministérios da Educação e da Justiça e Segurança Pública devem lançar, nos próximos dias, o edital do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica em Segurança Pública e Ciências Forenses, que investirá R$ 10,1 milhões em bolsas de mestrado e doutorado na área. Como já há, nas universidades públicas do país, mais de uma dezena de núcleos de estudo em segurança pública e de programas de pós-graduação, com mestrado e doutorado sobre o tema, com 246 pesquisas em andamento segundo registro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o edital deverá ser mais específico, para abranger linhas de pesquisa ainda não abordadas pela ciência, focando em ferramentas de combate e resolução de crimes, preveem especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo.
“Os estudos poderão traçar a origem de drogas e mapear redes de tráfico, identificar com precisão a autoria de crimes, por meio de exames de DNA em objetos, pessoas, corpos carbonizados e vítimas de violência sexual, além de ajudar no mapeamento de lavagem de dinheiro por meio de inteligência artificial e combater crimes de corrupção, pedofilia e invasão de privacidade com o uso do rastreamento”, detalhou o ministro da Justiça, Sergio Moro, na apresentação do programa, no dia 8 de janeiro.
Diretor jurídico da Federação dos Policiais Federais e pesquisador em segurança pública, Flávio Werneck diz que há um vácuo muito grande em pesquisa de segurança pública no país.
“Não à toa, temos um debate muito pouco qualificado, inclusive no Congresso Nacional. Temos índices pífios de resolução de crime, baixíssima eficiência e não conseguimos implementar pesquisas sérias”, diz.
Para ele, o que se produz, hoje, na academia, está muito focado na área do direito. “Temos um estudo na área criminológica do Brasil muito focado no direito, não tratamos do aprofundamento nas estruturas policiais, na parte sociológica e histórica e um estudo de vitimologia e aplicação dos recursos tecnológicos em segurança pública. Uma gama de outros conhecimentos que estão subjugados aos conhecimentos jurídicos nestes estudos. Espero que o edital contemple essas questões”, complementa.
O que se pesquisa em segurança pública
A Gazeta do Povo levantou a existência de 15 Núcleos de Estudos de Segurança Pública, criminalidade e nove programas ativos de pós-graduação em segurança pública, com cursos de mestrado e doutorado na área, em universidades públicas brasileiras, sempre ligados aos departamentos de direito ou de ciências sociais. Um dos mais ativos, com 35 pesquisas publicadas, é o da Universidade de São Paulo (USP). As linhas de pesquisa, no entanto, focam no perfil social das vítimas e dos autores dos crimes, nos direitos humanos, na situação das populações vulneráveis, na sensação de impunidade e no perfil da população carcerária.
Um dos estados que mais sofrem com o problema da segurança pública, o Rio de Janeiro estuda o tema também de forma mais social.
O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (RJ) tem, por exemplo, as seguintes publicações: “A política de segurança pública do Rio de Janeiro é ineficiente e financeiramente insustentável”; “Operações policiais no Rio: mais frequentes, mais letais, mais assustadoras”; e “Intervenção federal: um modelo para não copiar”.
O Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro é vinculado ao Departamento de Ciência Sociais da Universidade. Seus principais trabalhos são o monitoramento e divulgação de boletins com um conjunto de indicadores que permitam acompanhar a evolução dos delitos violentos e a manutenção do Índice de Homicídios na Adolescência [IHA], que estima o risco de mortalidade por homicídio de adolescentes que residem em um determinado território. A Universidade Federal Fluminense possui um Departamento de Segurança Pública e oferece um curso de bacharelado em Segurança Pública Social.
A Universidade de Brasília estuda tecnologia para o emprego de penas alternativas e para a criação de base de indicadores de homicídios no país. A Universidade Federal de Minas Gerais tem pesquisa publicada sobre como adotar a filosofia do policiamento comunitário em uma organização policial militar e a Universidade Federal de Santa Catarina faz uma pesquisa anual sobre vitimização e sentimento de insegurança.
Novas tecnologias e reestruturação das forças policiais
Werneck diz que o edital precisa focar no uso da tecnologia e no melhor aproveitamento dos recursos humanos das polícias. “Tenho certeza que com a expertise das universidades e, agora, com um fomento robusto, nossos pesquisadores vão conseguir apresentar soluções viáveis para o Brasil em segurança pública que não passe somente por fazer leis. Soluções desde a ponta, sobre como tratar policiais, melhorar o contato da polícia com a sociedade, que trabalhe a tecnologia, a gestão de recursos humanos. Creio que o fomento a esse tipo de pesquisa é excelente. Excelente até para desmistificar que você precisa do Jurídico para trabalhar segurança pública. O jurídico é uma atividade meio, uma das ferramentas que se precisa trabalhar, não é a atividade fim da segurança pública. Que esse edital venha focado na busca da verdade em segurança: o que é mais eficiente, mais eficaz e dará melhor resultado para a população”, afirma.
“Temos um país extremamente violento, com impunidade extremamente alta e impunidade gera violência”, continua.
Delegado de polícia e, atualmente, diretor da Escola Superior da Polícia Civil do Paraná, Luiz Alberto Cartaxo espera que o edital foque em pesquisas para dar embasamento científico para tecnologias já usadas ou a serem adotadas pela polícia. “Os velhos métodos morreram. Hoje não se faz nada sem tecnologia. Já temos sistema de georreferenciamento e geoprocessamento, mas podemos aprimorar isso com o conhecimento acadêmico. Embora sejamos pioneiros, primeiro estado a ter isso implantado, dá para evoluir muito, trazer novos padrões de pesquisa e de enfrentamento da criminalidade”, diz.
O delegado cita o exemplo da solução do caso Raquel Genofre, menina cujo corpo foi encontrado em uma mala na rodoviária de Curitiba, 11 anos depois, por meio do cruzamento do perfil genético do material colhido no corpo da vítima com os bancos de dados genéticos de criminosos da Secretaria de Segurança de São Paulo.
“É isso que a pesquisa acadêmica pode nos ajudar a desenvolver: um banco único, nacional ou, até, mundial, o confronto de dados para o combate à corrupção, que reduz o tempo de investigação de meses para segundos”, afirmou, citando que a Polícia Civil incentivará que seus agentes candidatem-se a essas bolsas, bem como, dependendo do enquadramento ao edital, poderá credenciar a própria escola da polícia no programa.
Advogado criminalista, mestre em direito processual penal e professor de pós-graduação em segurança pública, Roberto Daros espera que o edital financie pesquisas para subsidiar a reestruturação e reorganização das forças policiais brasileiras.
“Que esse edital abra espaço nas universidades para que se discuta o grande problema da segurança pública, que não é orçamentário. Não é mais verbas, para mais viaturas, mais armas, mais computadores. Falar em segurança pública necessariamente passa por reestruturação, reorganização. Precisa parar com a guerra corporativa entre as diferentes classes policiais e redimensionar as atribuições constitucionais, abrir espaço para as forças auxiliares que estão se transformando em novas polícias”, diz.
Para ele, os pesquisadores, hoje, nas universidades “ficam muito na área sociológica e não discutem o que precisa ser discutido” e a pesquisa acadêmica no campo da estruturação da polícia é boicotada.
“Precisa mudar a estrutura de polícia, a investigação policial tem que começar no local do crime, não ser burocratizada para dentro das delegacias, uma polícia cartorária. Navega-se na onda do decréscimo dos índices de criminalidade, mas isso é um fenômeno isolado. A segurança pública no Brasil ainda flutua ao sabor de se aplicar mais ou menos recursos, sem projetos consistentes, que façam as corporações policiais trabalharem com harmonia”, diz. “O passo para a modernidade é o ciclo completo da ação policial e as carreiras únicas dentro das corporações policiais. Só o Brasil tem polícias com ciclo incompleto, em que a Polícia Militar, nas ruas, prende um criminoso comprova autoria e materialidade, mas a investigação vai para a Polícia Civil, que, até então, desconhecia o ato criminoso”, conclui.
Fonte: Fenapef