Personalidade do Mês: Servidora Virgínia de Fátima Matil: um novo capítulo a ser escrito

7 de junho de 2021

O nome da servidora administrativa Virgínia de Fátima Matil , 63, 29 anos de serviço, está inscrito na história da Polícia Federal. Aposentada desde março deste ano, mesmo tendo cumprido seu tempo desde 2012, não há quem não a conheça no órgão. Também não é possível ficar indiferente à sua presença: alta, falante, exuberante, extrovertida, ela chama a atenção e se orgulha de ser muito querida pelos colegas. Mas também sabe que ciclos se encerram.

Mulher de luta, de origem humilde, arrimo de família, vinda do interior de Minas Gerais, chegou ao Rio aos 16 anos, enfrentou o preconceito racial e reescreveu sua história em que tudo apontava para que se tornasse empregada doméstica. Nada contra a profissão que ela acha muito digna, mas Virgínia queria mais. Contrariando as estatísticas, formou-se em Contabilidade e, junto com as irmãs, Vilma, Elizabeth (falecida em 2018), Arlene, Mara e Flávia, conquistou a cidade grande.

Com altos e baixos dentro da corporação, ela conta que, graças à PF, ganhou amigos que irá levar para a vida toda, construiu seu patrimônio, criou seu filho, o editor de vídeos, Fábio, 30, do casamento de 14 anos com o comerciante Luiz, e conheceu muitas pessoas e lugares no país. Com passagens pelo SELOG/NEOF, Junta Médica, Recursos Humanos, entre outros setores, foi no Passaporte em que ela foi do céu ao inferno, como o leitor poderá constatar na entrevista abaixo.

SSDPFRJ: Você tem quase 30 anos de Polícia Federal e 46 de trabalho. Por que tomou essa decisão de se aposentar em março de 2021, já que poderia estar aposentada desde 2012?

Virgínia Matil: Decidi assim muito rapidamente, porque peguei Covid em novembro. Fiquei com medo. Não precisei me internar, mas não fiquei bem. Fiquei trinta dias em casa, dez dias muito mal. Esta fase está sendo muito nova. É um desafio pessoal. Depois de 49 anos, não tenho mais que sair todos os dias para trabalhar. Não tenho mais que colocar salto, roupas bonitas, bolsa combinando. Sou uma pessoa muito ativa. Dessas que sai de manhã de casa e só volta à noite. Fui sete vezes em seguida, desde 1998, campeã de arremesso de peso, medalha de ouro, nos Jogos Nacionais de Integração dos Servidores da Polícia Federal (Joids). Tenho um grupo de vôlei na praia de Copacabana. Gosto de ir para o samba, para o pagode. Sou Salgueirense. Tudo isso eu não tenho podido fazer por causa da pandemia. Tenho uma vida social muito boa. Tenho meus amigos do Departamento que a gente não frequenta muito a casa, porque moramos longe. Tenho a convivência com minhas cinco irmãs que é muito boa e próxima. Meu filho também saiu de casa para casar. Isso me encorajou. Minha função maior era criá-lo. Quando eu me separei, ele tinha nove anos. Tinha que fazer dele um homem. E isso custa. É colégio, curso de inglês, preparação para a vida. Cheguei na PF transferida do extinto DNER, que hoje é o DNIT. Trabalhei lá de 1982 a 1991. Collor levou este órgão para Brasília e praticamente extinguiu-o aqui no Rio. Foi muito traumático para nós. Então, eu estava contente quando a PF me chamou, assim como outros colegas, em 1992, porque tinha ficado nove meses em disponibilidade e tinha aquela ameaça de ser mandada embora, de não ter salário. Fiquei aliviada e fui me adaptando. Aqui, tinha carência de administrativos. Tinha poucas mulheres também. Eu transitava pouco, porque estava conhecendo. Fui lotada no NEOF/SELOG, porque tinha experiência no setor financeiro do DNIT. Fiquei onze anos no SELOG. Fiz amigos que tenho até hoje. Mas trabalho desde a menoridade, porque naquele tempo podia. É muito tempo. Minha luta não é de hoje.

SSDPFRJ: Do que você acha que vai sentir mais falta da PF?

VM: A PF que eu vou sentir falta já não existe mais. Gostava daquela união que a gente tinha, de encontrar as pessoas no corredor e era aquele falatório. A gente ria alto, conversava. Todo mundo conversava com todo mundo: delegado, agente, escrivão. Eram pessoas da minha faixa etária que já foram embora. Esse também foi mais um motivo que me levou a me aposentar. Hoje, eu não tenho mais identificação com os funcionários novos. Eles nem me conhecem. É horrível. Mas é o tempo deles. Eu não tenho nenhuma identificação com a geração mais jovem e nem eles têm comigo. Eles podem até pensar o que eu estou fazendo aqui que ainda não me aposentei. Hoje em dia ninguém mais sua a camisa. É mais glamour. Não precisa mais fazer aquele trabalho de campo que se fazia antes. Mas a PF me deu grandes amigos como a Simone (Mendonça Schmidt, servidora administrativa). Ela é um grande presente que vou levar para o resto da minha vida. É uma referência para mim. É minha melhor amiga, irmã, mentora, conselheira. Vou sentir falta da convivência com as pessoas também. Outro colega que era minha cara e faleceu recentemente era o Nogueira (APF José Antônio Nogueira). Quando a gente se encontrava era tanta baboseira que a gente falava. Eu também adorava os Jogos Nacionais de Integração dos Servidores da Polícia Federal (Joids), a integração que acontecia. Adoro qualquer lugar que tenha união, pessoas e amizade sincera. Não é à toa que o setor que mais gostei de trabalhar foi o Passaporte, porque é de atendimento ao público. Tem muito trabalho, mas eu gosto. Quando eu cheguei ao antigo Passaporte na Av. Venezuela era muito animado. Tinha um grupo grande. Era maravilhoso. A gente ria o tempo todo. O tempo passava e a gente nem percebia. Depois, teve a época gloriosa no Shopping Leblon, de 2013 a 2015, trabalhando com a Flávia (chefe do setor), que é maravilhosa. Tenho elogios na minha pasta funcional desses dois momentos no Passaporte.

SSDPFRJ: Quais momentos ficarão marcados em sua história com a PF?

VM: Meu filho brinca que tenho que escrever um livro, porque minha história de vida é maravilhosa. Mas não são só coisas boas. Tive dissabores dentro do Departamento. Mas, em compensação ninguém nunca me viu me lamuriando e chorando. Eu estou sempre disposta. Acho que isso lhe dá uma levantada. Teve um tempo em que andei um pouco desgastada e ninguém acreditava que corri o risco de ter uma depressão. Mas eu corri. Em 2003, por conta de uma operação do Ministério Público, minha irmã mais nova que trabalhava aqui como terceirizada foi detida por 29 dias, acusada de vender passaportes. Foi a parte mais dura da minha vida aqui dentro. Fomos inocentadas, mas foi muito desgastante. Isso se estendeu por seis anos. Não desejo o que eu passei para ninguém. Foi uma operação muito séria que prendeu muitos policiais e despachantes. Eu nunca tinha passado por isso na vida, em anos e anos de Departamento. Fui ao fundo do poço. Mas as pessoas me cobravam eu estar alegre, porque é o meu jeito. Mas eu estava devastada, humilhada, chateada. Não pude sofrer a minha dor, porque tive que correr atrás de advogado. Minha irmã tinha acabado de ter neném e eu fui lhe dar assistência. Minha mãe também tinha acabado de falecer de Alzheimer. As minhas irmãs estavam desestabilizadas. E, na minha família, eu nunca pude me deixar abater, porque era sempre eu coordenando. Eu tinha que trabalhar e odiava entrar no órgão, porque, apesar da maioria das pessoas que trabalhava comigo acreditar em mim, sempre há aquelas que fazem fofoca e que achavam que eu participei da história. Mas eu sempre fui muito correta. Não tem nada que desabone a minha conduta. Mas acho que virei alvo, porque sou uma pessoa muito popular. Todo mundo me conhece. Falo com todo mundo. Sou muito transparente. Sempre tratei todo mundo igual. Sou muito querida. Eu posso bater no peito. Não tem uma porta que não se abra para mim no Departamento. Por isso, tive o apoio de muitos colegas, o que foi importante. Pessoas que se ofereceram para depor a meu favor. O próprio Sindicato assumiu a defesa da minha irmã. Comprou a briga, porque viu que era um absurdo o que estava acontecendo. Mas eu só fui viver essa dor em 2011. Daí, explodiu minha cabeça. Não queria vir trabalhar. Desabei. Fiquei três meses em casa, em depressão. Só pensava naquilo que aconteceu lá atrás.

SSDPFRJ: Como é ser da carreira de apoio em um órgão, cuja finalidade são as investigações e operações policiais?

VM: É difícil. Tenho amigos de todos os tipos, muitos conhecidos, pessoas chegadas. Tenho uma boa política com delegado, perito, agente, papiloscopista, escrivão, administrativo, contratado, faxineiro, todo mundo. Agora não vou negar para você que de discriminação eu entendo. Não falo de preconceito racial, porque nunca sofri no serviço público. Falo do estereótipo de subserviência. Como eu sempre trabalhei muito bem e sempre respeitei todo mundo, também exigi respeito. Agora não era suficiente. Sempre há pessoas que abusam. Não respeitam por ser administrativo. Eu sempre falo que existem pessoas que ganham mais do que eu, que são mais altas do que eu, mais bonitas, agora melhores do que eu não tem. Dei tudo o que eu podia dar à Polícia. Recebi muita coisa também. Pude conhecer vários pontos do Brasil, muitos que talvez eu não tivesse condições de ir. Conheci muitas pessoas, mas, principalmente, o meu trabalho me ajudou a construir o meu patrimônio. Meu filho continuou estudando e pôde fazer cursos. É o que você ganha com o seu trabalho, mas precisa ter disposição, porque as viagens não são fáceis. Nem sempre tem um hotel padrão cinco estrelas. Já passei perrengue, mas vale a pena, financeiramente. As viagens eram sempre para dar apoio administrativo, porque há carência de pessoal. Meu maior tempo de viagem foram quatro meses em Florianópolis e em Campos dos Goytacazes. Mas chega uma hora em que o ciclo se encerra. Poderia ficar extremamente chateada com o que eu estava vendo ao meu redor, a discriminação, a diferença salarial. Muitos administrativos carregam essa mágoa. Sempre será dito que, sem os servidores administrativos, não têm operação, que a casa não anda, que não fecha a folha de pagamento, mas na hora do vamos ver a gente é deixado de lado. Infelizmente, nem todo mundo pode ir embora, mas deveria, para poder cuidar da sua vida. Eu encerrei minha carreira no Setor de Recursos Humanos (SRH). Lá, há um grupo muito bom. Mas é frustrante, porque é um lugar que tem a maior concentração de pessoas do Departamento que já poderiam estar aposentadas. Elas têm tempo, mas não se aposentam por causa do lado financeiro, principalmente, por causa das injustiças salariais que acontecem aqui. A carreira de apoio é elogiada, mas não é valorizada e eu, aposentada, não ganho nem o que um novato vai ganhar. Lamento muito, porque eu vou sair e me sinto uma privilegiada por sair de pé, andando e ainda com disposição para fazer alguma coisa, porque há muitos ali que não podem sair e se aposentar, porque os filhos ainda moram com eles, porque pagam aluguel e não deu para juntar nada. Por isso que eu sempre complementei minha renda vendendo minhas coisinhas. Uma vez, uma colega me perguntou se eu não sentia vergonha de vender trufas de chocolate. Eu disse que eu teria vergonha de ficar devendo, mas, de trabalhar, nunca.

SSDPFRJ: Como se descobriu vendedora? E, agora que se aposentou, tem planos para essa nova etapa da sua vida?

VM: Antes de me separar, eu tinha um padrão de vida bom. Meu ex-marido tinha uma loja. Quando me separei, fui para o fundo do poço. Eu só sabia gastar. Meu filho ficou preocupado. Tinha nove anos. Estudava em colégio particular, fazia curso de inglês. Minha mãe estava doente. Ela morreu de Alzheimer em 2003. Eu tinha que arcar com as contas. Gastei muito dinheiro em assistência, remédios e atendimento. E foi tudo no mesmo ano da operação que prendeu minha irmã. Eu era arrimo de família, mas minhas irmãs faziam o que podiam. Eu não sou a filha mais velha, mas era considerada a mais bem sucedida. Também nunca fiquei esperando. Sou de correr atrás. Comecei a ver as coisas acontecerem e não podia faltar para o meu filho, que é minha prioridade. Foi na adversidade que me tornei vendedora. Descobri que sou boa. Foi ideia da minha irmã. Comecei em 2002. Meu ex-marido nunca me deu pensão. Nós não negociamos. Vendia moda íntima, moda de praia, cosméticos e trufas de chocolate. Era uma maneira de complementar o salário, porque o administrativo não ganha bem. Agora que me aposentei, eu e minhas irmãs abrimos uma empresa de material de limpeza, a M+. Eu não estou parada, porque, se fosse para me aposentar para ficar parada, eu ficaria doente. A gente panfleta na rua, fazemos reuniões. Eu não me arrependo de nada na minha vida. Foram 29 anos aí. Meu filho era bem neném, tinha onze meses, quando comecei na PF.

SSDPFRJ: Você é de Miraí, cidade no interior de Minas Gerais. Como aconteceu sua vinda para o Rio de Janeiro?

VM: Miraí é a cidade onde nasceu o cantor Ataulfo Alves. São 12 mil habitantes. É como um bairro. Vim para o Rio aos 16 anos, com minha irmã, Elizabeth, que faleceu há três anos de uma embolia pulmonar. Viemos desbravar a cidade. Era meu sonho morar aqui. Nós não tínhamos nada. Era muito de interior. Meu destino seria virar empregada doméstica. Minha irmã mais velha, Vilma, já morava aqui com o marido e eu vim para ficar na casa dela e ajudar com o bebê. Mas não deu certo. Eles eram recém-casados. Então, fui morar com a minha irmã Beth, que já trabalhava em casa de família, em Santa Teresa. Ela ganhava bem e ajudava a gente. Ela me ajudou a pagar os meus estudos. Comecei a estudar contabilidade e meu formei pela Unisuam. A gente não tinha muita condição. Moramos em uma comunidade, em Inhaúma, mas a vida começou a andar, e a gente pôde trazer as outras irmãs. Aí, nos mudamos para um lugar melhor. Somos muito unidas. Eu senti muito a perda da Beth, porque nós desbravamos o Rio sozinhas, lutamos juntas. Em 2019, fizemos uma viagem para Portugal, só as irmãs. Éramos pessoas pobres, vindas do interior. Tivemos muitas dificuldades aqui, mas ninguém se prostituiu, roubou, nem matou. Tiramos mais de 500 fotos. Foi maravilhoso estar com elas lá.

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