Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da Repúbllica, José Robalinho Cavalcanti, afirma que ninguém perde nem ganha com embate entre instituições e que corporativismo de delegados por carreira jurídica está por trás da discussão
“Falsa polêmica”. Assim o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti, classificou a troca de farpas entre Polícia Federal e Ministério Público Federal sobre a competência policiais de firmar acordos de delação premiada nas investigações criminais.
Procuradores argumentam que o dispositivo Lei de Organizações Criminosas (12.850/2013), que regulamentou os acordos, prevê que o delegado pode fazer delação com investigados para obtenção de provas, é inconstitucional.
“Se o titular da ação penal em nome do Estado é o Ministério Público e a colaboração vai ser travada em juízo durante o processo penal, não pode ser feita sem a participação do titular da ação penal, porque criaria uma situação esdrúxula, ridícula, absolutamente inconstitucional”, afirmou Robalinho, em entrevista ao Estadão.
O embate jurídico vai ser arbitrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que tem que julgar uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) apresentada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em 2016, nas investigações da Operação Acrônimo – contra o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT) – e também na homologação, ou não, da delação fechada pela PF com o marqueteiro Duda Mendonça – sem a participação do Ministério Público.
Procurador criminal há 18 anos, Robalinho afirma que o pano de fundo dessa queda de braços da PF com o MPF é o corporativismo de delegados da Federal, que históricamente reivindicam o direito de serem classificados como carreira jurídica.
“Para se justificar como carreira jurídica (parte dos delegados da PF), eles mantém a ferro e fogo qualquer tipo de conduta que tenham perante o juiz. Mesmo que isso atrase o processo, mesmo que isso perca o sentido.”
LEIA A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA:
Estadão: O MPF e a PF estão em conflito pelo direito de fazer acordos de delação premiada?
José Robalinho Cavalcanti: A melhor situação é sempre quando Ministério Público e Políca trabalham em conjunto. E não há nenhuma dúvida que a lei, como saiu do Congresso, ela faculta ao delegado de polícia fazer a colaboração premiada. Está lá escrito. Essa situação está sendo levada com muita sobriedade pelo Ministério Público. Ninguém está fazendo nenhum ataque à Polícia. É uma questão jurídica. Há um equivoco grave e uma inconstitucionalidade grave no que está previsto na lei.
A Polícia é um órgão do Estado, o Ministério Público e o Judiciário também são, cada um tem seu papel. No caso específico de denunciar e tocar processos criminais em juízo, esse papel é exclusivo do Ministério Público. Polícia não é parte no processo penal. Polícia tem algum papel perante juízo na parte de investigação, mesmo assim nós questionamos, mas não vou entrar nessa questão agora.
Estadão: Mas se a delação for travada pela PF na fase de investigação?
Robalinho: Acontece que as consequências da colaboração serão expostas ou concretizadas na fase do processual, sempre e necessariamente. Então a colaboração premiada define determinada pena, uma determinada vantagem para a pessoa. Como é que uma instituição que não é parte do processo vai fechar um acordo de colaboração, obrigando uma outra instituição, que é completamente independente dela, que é o Ministério Público, que é quem vai levar o processo?
Vamos traçar duas situações concretas que mostra bem a situação, já que falamos de enventuais discordâncias – e depois vamos falar da concordância, que é muito mais importante:
Uma determinada pessoa comparece à Polícia, ele está sendo investigado, e propõe junto com a sua defesa uma colaboração. O delegado acha interessante, coleta as informações e faz o acordo. É isso que eles defendem que pode ser feito. O Ministério Público é contra, porque se ele for a favor, é só fazer os dois juntos, não tem problema, mas ele discorda. Então olha a situação absurda que se cria. Digamos que eu, Ministério Público, não ache que existam provas contra aquela pessoa. Não existem provas para ele ser denunciado. Como ele vai ser réu colaborador se eu sequer vou denuncia-lo. Estou pegando uma situação absurda, só para mostrar. ‘A não, mas a Polícia tem certeza que ele é culpado’. A Polícia pode ter certeza um milhão de vezes, quem denuncia é o Ministério Público. Mais do que isso, essa decisão de denunciar ou não denunciar nem o Judiciário pode rever. Se o Ministério Público decide ‘não vou denunciar fulano’. O máximo que o juiz pode fazer, se ele discorda da proposta de arquivamento, está lá no Córdigo de Processo Penal há mais de 70 anos, é ele encaminhar para o órgão superios do Ministério Público. A decisão final de denunciar é do Ministério Público.
Então vamos sugir da situação absurda e colocar em uma situação mais mediana. A Polícia trava uma colaboração com um sujeito. E eu, Ministério Público, recebo as provas e acho que essas provas que a Polícia achou robustas suficientes para respaldar essa vantagem e que o Judiciário até concordou e homologou. Só que eu (Ministério Público), que sou o titular da ação penal não vou usar essas provas na denúncia. Não vou usar porque acho que elas são ilícitas, porque são imprestáveis ou porque são contraditórias. Como o sujeito vai ter vantagens se eu sequer vou usar os argumentos que ele deu. Terceira situação: eu uso, mas eu acho que o que o benefício que a Polícia concedeu para ele está muito ou está pouco, tanto faz. O benefício vai ser travado no processo penal em juízo, quem cuida do processo penal e o Ministério Público.
Estadão: Mas a Lei 12.850 de 2013, de Organizações Criminosas, que regulamentou as delações permite…
Robalinho: Com todo respeito, essa é uma falsa polêmica. Ninguém está querendo diminuir a Polícia. A Polícia insistentemente, e não é a Polícia inteira, vamos colocar claramente, vou ser mais incisivo, mas absolutamente respeitoso. Existe uma categoria específica da Polícia, os delegados da Polícia Federal, que há anos e décadas travam qualquer tipo da mordernização da investigação, porque eles insistem em se manter como uma figura absolutamente esdrúxula, que não existe em nenhum lugar do mundo, com essa conformação, que é um cargo de bacharel de Direito que é chefe de Polícia e que ele é a autoridade jurídica e só ele toca a Polícia. Para se justificar como carreira jurídica eles mantém a ferro e fogo qualquer tipo de conduta que tenham perante o juiz. Mesmo que isso atrase o processo, mesmo que isso perca o sentido.
Tenho 18 anos como procurador criminal, tenho maior respeito profissional, além do respeito técnico que tenho como presidente da associação, pelos delegados de Polícia Federal. Trabalhei com diversos deles, todos têm meu testemunho, me conhecem sabem que tenho o maior respeito pelo trabalho de polícia. O trabalho de Polícia é um trabalho especializado, técnico, tão importante e socialmente comparado com o do Ministério Público, sem nenhuma diferença e deve ser tão bem remunerado como é o do Ministério Público. Eles têm uma revindicação antiga de que deveriam ganhar igual, pelo menos os cargos superiores, ao salário do Ministério Público, eu não tenho nada contra isso. Agora eles não são carreira jurídica. Essa insistência de que a Polícia se manifesta perante o juízo, manifesta dentro do processo penal, existe apenas para sustentar o corporativismo de uma carreira policial, não da Polícia inteira.
Estadão: O sr. quer dizer então que a questão da carreira jurídica para delegados é o pano de fundo do que o chamou de ‘falsa polêmica’ sobre a commpetência de fazer acordos?
Robalinho: Exatamente. É a mesma coisa que está por trás de uma discussão que… Você vê, te dou outro exemplo, uma coisa pequena, mas… Faz anos que o Senado Federal está com um projeto para regulamentar as chamadas audiências de custódia. As audiências de custódia já foram implementadas no País há mais de dois anos por decisão do Supremo Tribunal Federal, mas não tem regulamentação. Sabe por que? Porque uma polêmica está travando (o projeto), porque os delegados de polícia, você pode ouvir qualquer senador, não aceitam que a legislação saia de lá sem escrever que só quem pode encaminhar alguém para juízo para fazer a audiência de custódia é um delegado de polícia, não pode ser qualquer outro policial, tem que ser um delegado. Existem vários outras situações de Polícia Militar em vários estados, que não são delegados, mas eles insistem. Existem vários projetos travados no Congresso porque em vez de onde estava escrito polícia ou autoridade policial, os delegados existem que só saia o projeto se estiver escrito delegado de polícia.
É o mesmo pano de fundo. Com isso, não faz sentido essa demanda.
Estadão: Quem ganha com essa disputa da PF com o MPF, exatamente em um momento que se fala muito em movimentos para desarticular a Lava Jato?
Robalinho: Não acredito que ninguém ganhe. Em compensação, não acredito que tenha ninguém perdendo. Vou explicar…
Estadão: O delatado não ganha?
Robalinho: O delator perde, porque fica com insegurança jurídica. Imagine uma situação em que ele trava um acordo com a Polícia, digamos que ele e seu advogado estejam de boa fé, acreditam que aquele acordo vai ser honrado e o Ministério Público, que é o titular da ação penal não está não está cingido a aquilo, não vai seguir. Isso é péssimo, causa instabilidade.
Do ponto de vista da investigação, que é a sua primeira pergunta, eu bati, agora vou puxar para o outro lado e faço questão de fazê-lo. Dos dois lados do balcão, da Polícia e do Ministério Público. Existem profissionais sérios, absolutamente isentos, competentes e responsáveis pelo seu trabalho. Então, polêmica que exista, é uma polêmica institucional. Não atrapalhará em nada a condução de investigações. Tenho certeza absoluta que nenhum policial, nenhum delegado, por mais que descorde que o Ministério Púiblico fez determinada colaboração, vai deixar de tocar com zelo e empenho total o inquérito, por conta disso. Como da mesma forma tenho certeza que digamos, uma colaboração foi travada pela Polícia, chega lá no Ministério Público e digam ‘não quero nem ver as provas que você pegou’. Isso não existe.
Quem apostar que por conta de uma polêmica dessa, a Polícia e o Ministério Público vão se desentender e vai sair ganhando o réu ou o investigado, está errado. Nos casos concretos, as investigações continuarão a ser tocadas, porque existem pessoas responsáveis, profissionais, isentos e acima de qualquer suspeita dos dois lados do balcão.
Estadão: Mas não existe muita gente colocando gasolina nessa fogueira?
Robalinho: Acho que pode até ter gente esperando isso. Mas desde que a Lava Jato existe, já se vão três anos, já tentaram mil intrigas dentro do Ministério Público, do Ministério Público com o Judiciário, com a Polícia, isso nunca funcionou. As instituições são sólicas e vão continuar trabalhando.
A Polícia Federal é séria, isenta e não deixará de fazer qualquer trabalho. Eu tenho e a Associação Nacional dos Procuradores da República o maior respeito para a capacidade profissional e a isenção dos delegados de polícia. A função de chefe de investigação da polícia é valorizada no mundo inteiro. Tem altíssimo valor social. Tem que ser especializada e devem ser cada vez mais valorizada, mas não é uma carreira jurídica. Esse é que o grande problema.
Agora, no caso concreto, com todo respeito, se o titular da ação penal em nome do Estado é o Ministério Público e a colaboração vai ser travada em juízo durante o processo penal, não pode ser feita sem a participação do titular da ação penal, porque criaria uma situação esdrúxula, ridícula, absolutamente inconstitucional.
Estadão: Alguns defensores de alvos da Lava Jato têm buscado diretamente o juízo em busca de redução de pena, para fugir de acordos que não são aceitos pelo Ministério Público.
Robalinho: Mas aí é um direito deles, previsto no processo penal. A lei de proteção às testemunhas e do crime organizado, da década de 1990, já previa isso. A possibilidade de diminuição da pena, de vantagens se o juiz reconhece a colaboração. Isso é absolutamente legítimo. Mas não é o acordo de colaboração, que tem uma configuração mais formal, que é importante, porque dá garantia para todas as partes. O que mudou foi exatamente isso, a colaboração premida (da Lei 12.850/13), na medida que tem uma formatação, você negocia e leva direto ao juízo… O Supremo agora afastou qualquer questão, quando disse ‘uma vez homologada está garantido, só se o sujeito deixar de cumprir ou não estiver nos parâmetros legais’, isso dá uma segurança jurídica para as partes, que é fundamental para que funcione.
Fonte: Estadão