Aos 24 anos, Daniela de Almeida trabalhava como veterinária de pequenos animais e era voluntária na ONG Fala Bicho. Ela nem conhecia todas as competências da Polícia Federal, mas quando soube que uma delas era investigar denúncia de maus tratos a animais, decidiu que iria prestar concurso para o órgão. “Aquele dia mudou minha vida”, disse. Determinada, três anos depois, a carioca deixou seu estado de origem para tomar posse como APF na SR, em Palmas (TO). Na região norte, Daniela ficou lotada por dez anos, só voltando ao Rio de Janeiro em 2013 por conta do estado de saúde de sua mãe. Seus dois filhos, Mateus, 14, e Fabio, 11, nasceram no Amazonas e seus melhores trabalhos foram os realizados no Amazonas e no Tocantins. Hoje, aos 45, ela concilia o trabalho no Setec com o mestrado em Saúde, Medicina Laboratorial e Tecnologia Forense na Uerj. Nesta entrevista, ela fala de seu estudo acadêmico, crimes contra a natureza, maternidade, carreira policial e ativismo ambiental.
SSDPFRJ: Seu objetivo, ao entrar para a PF, era trabalhar com meio ambiente? Qual trabalho você destaca nesses anos de PF?
DA: A época que eu mais trabalhei foi quando eu estava lotada na região Norte, no Tocantins e no Amazonas. Não tem igual. Fui mais operacional. No Amazonas, eu trabalhei com repressão a tráfico de animais. No Tocantins, trabalhei em aldeias indígenas, aquelas coisas que você nem imagina que existem. Só descobri por causa da PF. Foi legal por conviver com eles, conhecer o estilo de vida. A gente vive em centro urbano e não vê quanta coisa diferente tem no Brasil e a PF permite isso. Eu já fui a missões específicas para esses trabalhos sendo convidada por causa do meu nome. Mas é importante dizer isso. Eu acho que as pessoas entram na PF com muitas expectativas achando que podem trabalhar no que quiser e não é bem assim. A gente trabalha com hierarquia e temos que aceitar que cumprimos ordens e que nem sempre vamos fazer o que a gente quer. Talvez seja por causa disso que eu corri atrás de me desenvolver fora. O mestrado é por conta disso. Infelizmente, o departamento não aproveita nosso conhecimento, nossa vocação. Eu entrei pensado em atuar com crimes ambientais, mas eu já tinha me questionado que eu poderia não conseguir. Então, procurei saber quais outros trabalhos existiam na PF e achava muito interessante, independente de ser ou não na área ambiental. Isso também é uma coisa muito legal do órgão. São muitos tipos de trabalho. Eu posso falar que das muitas atividades que existem na PF, eu conheço um pouquinho de cada uma.
SSDPFRJ: Nesses 17 anos de PF, o que você aprendeu e acumulou de conhecimento sobre crimes ambientais?
DA: A legislação de crimes ambientais é branda e falta educação porque muitas práticas são culturais, estão enraizadas. As pessoas querem ter um animal silvestre em casa perto delas, não têm noção que o que elas fazem prejudica o meio ambiente. O crime ambiental nunca está sozinho. Vem acompanhando de falsificação de documentos. De um lado, há o fornecedor de animais silvestres que só tem a visão financeira, comercial. Do outro, o consumidor. Os animais silvestres mais traficados são as aves (passeriformes, papagaios e araras), depois, os répteis (lagartos, tartarugas e serpentes). Em toda região do Brasil que seja próxima de mata existe captura de animais silvestres com objetivo financeiro e cultural também. São áreas rurais, com pouco policiamento, regiões pequenas, com pessoas que não têm educação ambiental. Para o comerciante, o animal é um bem, um objeto. É um negócio bastante lucrativo. Mas diferentemente do tráfico de drogas, por exemplo, em que a pena é alta, o tráfico de animais é crime de menor potencial ofensivo, tem pena leve. Dependendo do crime, nem fiança tem, vai responder em liberdade. O mais comum em todas as áreas de tráfico é o vendedor falsificar a documentação como se esse animal fosse legalizado, fosse um animal que pudesse ser vendido e, na verdade, é um animal que eles retiram da natureza. Enganam até o comprador que pensa que está comprando o animal de forma legal. Então, não é só um trabalho de apreensão de animais, é um trabalho de investigação de crime organizado, só que é um crime organizado que envolve a venda de animais silvestres. Mas a gente só consegue prender, quando utiliza tipificação do código penal, e não da lei de crimes ambientais. Quando há falsificação de documentos, por exemplo, aí já existe outro tipo de crime. Podemos prender a pessoa. Temos que investigar bastante. Conseguimos prender por esse lado da falsificação da documentação, das notas fiscais, não por maus tratos. Esse não dá cadeia, apesar de a lei ter mudado recentemente para animais domésticos. Para o nosso trabalho da PF, que envolve animais silvestres, nada mudou. O consumidor é aquele que só quer ter o animal silvestre em casa. É aquele amor deturpado, egoísta. Existe também público de competição de canto. Isso é muito comum no Brasil. É cultural. Quer ter o animal para participar de competição como forma de entretenimento. Mas crimes ambientais também envolvem desmatamento, que é o maior problema da Amazônia, e a biopirataria, que envolve mais a parte científica. Pessoas que levam plantas, insetos e pequenos animais originários do Brasil para o exterior para que laboratórios criem com a nossa matéria-prima e a gente tenha que pagar por esses medicamentos e substâncias.
SSDPFRJ: Você faz mestrado na Uerj desde 2019. O que exatamente você pesquisa?
DA: Eu caí de paraquedas nesse mestrado. Foi um colega da Polícia Civil que viu o meu trabalho. Ele é perito veterinário e eu sempre levava essa questão para ele sobre a gente apreender os animais silvestres oriundos do tráfico sem conseguir fazer um rastreamento da origem desses animais. Porque depois que a gente apreende os animais, a gente leva para os centros de triagem do Ibama. Mas não há um método científico de devolução à natureza. Não sabemos a origem desses animais. Então, esse meu amigo me apresentou ao chefe do laboratório de DNA da Uerj. Lá, eles gostaram da ideia e me convidaram para fazer um projeto, tentar o mestrado. Eu fiz a prova e passei. Agora, estou criando um protocolo de coleta de amostras biológicas de animais silvestres oriundos do tráfico para fazer um rastreamento por DNA. É para tentar descobrir sua origem. Não vai ser só para a PF. Serve para todas as Polícias que trabalham na área ambiental e os órgãos de fiscalização ambiental como Ibama, Inea, órgãos estaduais e Polícia Militar que tem o Comando de Polícia Ambiental.
SSDPFRJ: Você ficou muito conhecida e já foi até premiada por causa das palestras que realiza sobre educação ambiental. Como está esse ativismo ambiental?
DA: Agora parei por conta da pandemia, não fiz mais nenhum tipo de evento ou palestra. Mas, quando faço, é de forma voluntária, pessoal mesmo, não tem a ver com trabalho. Já apresentei em semana de meio ambiente no Centro Cultural Banco do Brasil, para público adulto, em escolas para crianças. Fui premiada no Itamaraty, recebi uma moção na Câmara no Rio de Janeiro. Transformei a série de palestras que fazia em escolas infantis em artigo científico, a convite do SSDPFRJ. Agora até pretendo dar continuidade a essas palestras com uma visão cientifica. Pretendo melhorar o trabalho, aproveitar o que eu já fiz e incrementar, agora com outra visão. Nesses eventos, percebo que existe uma curiosidade muito grande pela atuação da Polícia Federal, mas o que eu falo é do tráfico e do trabalho policial em geral e de como fica o estado desses animais no momento da apreensão da polícia. É muito comum a gente ouvir das pessoas dizerem: “ah, mas eu só peguei um passarinho”. Mas, quando isso acontece, você impediu que centenas de animais se reproduzissem com a retirada desse animal da natureza. Quando você retira o animal da natureza, você impede que ele se reproduza. E as florestas dependem das aves, porque as aves são disseminadoras de sementes. As florestas não têm mobilidade. Sem as aves na natureza, a gente vai perder as florestas também. O animal tem sua função ecológica. Quando ele não está no seu habitat, não está se reproduzindo, ele está sem função ecológica. Também falo do antropocentrismo, do egoísmo do ser humano de achar que ele é a maior coisa que existe. A gente acha que tudo o que existe no planeta é em nossa função. Não pensamos nas outras bilhões de espécies que existem no planeta. O animal quer procurar o alimento dele, quer se reproduzir, quer interagir com a própria espécie, não com o ser humano.
SSDPFRJ: Você é mãe de dois meninos, morou por dez anos longe do Rio que é seu estado natal e onde está sua família e tem uma profissão que exige ficar meses fora. Agora, você está fazendo um mestrado. Como faz para conciliar tudo?
DA: Eu não sei como eu consigo fazer tanta coisa. Eu consigo ser uma mãe presente. Vou às missões. Converso bastante com os meus filhos, explico. Eles entendem, sentem orgulho, acham legal. O caçula quer ser policial federal. Na minha ultima missão, fiquei quase seis meses na Bahia. Foi antes da pandemia. A salvação da minha vida que mantém a minha sanidade mental é a moça que trabalha comigo. É a Elza quem segura a minha barra quando estou fora. Leva as crianças para a escola, dá comida, lava a roupa deles. Ela trabalha comigo há mais de 20 anos. Ainda bem que hoje a tecnologia ajuda, porque eu fiquei quase seis meses fora. Eu estudava com eles por videochamada. Tentava manter as matérias. Consegui baixar a apostila da escola pela internet. No fim de semana, eu conseguia dar uma fugida. Pegava ônibus, 36 horas de viagem para vir aqui ficar um dia e voltar.