Milícias agem em bairros de Niterói e até escolas e prédios sofrem com ameaças, apontam denúncias

20 de agosto de 2018

MP e CPI investigam atuação de criminosos, que cobram taxas de segurança, obrigam comerciantes a venderem mercadoria contrabandeada e controlam venda de gás. Centro, Icaraí e Itaipu são alvos.

Centro, Itaipu e Icaraí. Três dos mais conhecidos e movimentados bairros de Niterói, três locais onde há atuações de grupos milicianos. É o que apontam denúncias encaminhadas ao Ministério Público, que serão investigadas também por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

A instalação será realizada na Câmara dos Vereadores do município da Região Metropolitana do Rio a partir de terça-feira (21). Os relatos apontam que criminosos agem nessas três áreas da cidade explorando a venda de gás, assinaturas de internet e TV por assinatura e até mesmo obrigando comerciantes a venderem material ilegal.

“Niterói é uma cidade onde vivem pessoas de alto poder aquisitivo, com classes média e média alta muito bem estabelecidas. Várias pessoas ligadas a altos escalões da polícia e do poder judiciário também moram aqui. Durante muito tempo, acreditou-se que essa condição protegeria os moradores da presença e da ação de grupos criminosos. Isso pode ter sido verdade no passado, mas essa situação já deixou de existir. Niterói já não é mais uma cidade ‘invicta’ no que se refere ao crime organizado”, avaliou o agente da Polícia Federal e vereador Sandro Araújo (PPS), responsável pela criação da CPI.

As afirmações do vereador encontram respaldo na quantidade de denúncias sobre ações de milicianos na cidade recebidas pelo gabinete do vereador. Apenas este ano, foram quase 70, todas encaminhadas para o Ministério Público do Rio. Há pelo menos um inquérito em andamento na Segunda Central do MPRJ que trata da ação das milícias em Niterói.

As atividades das milícias variam de acordo com os bairros onde atuam e, da mesma forma como ocorre em outros locais do estado do Rio, também estão sujeitas a adaptações. Seja por conta de confrontos com grupos rivais, repressão policial ou necessidade da diversificação dos negócios.

De maneira geral, de acordo com a investigação, é possível dividir as atividades dos grupos criminosos presentes no território niteroiense em três grandes grupos e ramos de atividades:

  • Itaipu – Controle de venda de gás, fornecimento de sinais de internet e TV por assinatura, além da cobrança de taxas de proteção para estabelecimentos comerciais;
  • Icaraí – Cobrança de taxas de proteção para condomínios e estabelecimentos comerciais;
  • Centro – Coação de comerciantes e jornaleiros para a venda de cigarros contrabandeados.

“Primeiro eles chegam à paisana. Dizem que são policiais e fazem ameaças, dizendo que vão fiscalizar os produtos que vendemos. Logo em seguida, obrigam você a vender materiais contrabandeados, como cigarros fornecidos por eles mesmos. Também somos coagidos a pagar propina. Eles enviam pessoas que trabalham com eles para fazerem essa arrecadação. Quem se recusa, recebe represálias”, detalhou um comerciante do Centro de Niterói, que pediu para não ser identificado.

Bancas de jornal depredadas

Bancas de jornal estão entre os alvos prioritários dos milicianos. Entre maio e junho deste ano, pelo menos 12 delas, localizadas no Centro, Icaraí e Itaipu, sofreram depredações cometidas pelos bandidos.

A dinâmica é sempre a mesma: homens armados chegam de forma discreta nas bancas e oferecem a mercadoria irregular. Na maioria das vezes, e apesar do tom de ameaça velada, os jornaleiros se recusam a vender os produtos.

Pouco tempo depois, as bancas são depredadas com pés de cabra e roubadas. Em pelo menos uma delas, os bandidos usaram explosivos.

Com medo, os jornaleiros são obrigados a ceder. Uma marca de cigarro, contrabandeada do Paraguai, é encontrada com facilidade em boa parte das bancas e em outros estabelecimentos do Centro.

“Não abri uma loja para vender mercadoria ilegal. Eu nunca quis isso e não me sinto nada bem nessa situação, eu não sou criminoso. Mas ou concordamos com o que nos impõem ou sofremos consequências, que podem ser o roubo de nossos produtos, a depredação de nosso estabelecimento ou até coisa pior”, diz o comerciante.

Medo em Icaraí

Em tempos de taxas de violência elevadas, poucos produtos são tão valiosos quanto a sensação de segurança. Milícias sabem disso e se articulam para lucrarem a partir dessa necessidade, oferecendo o que o cidadão mais deseja: proteção – ainda que, em muitos casos, apenas delas mesmas.

Segundo números do Instituto de Segurança Pública (ISP), apenas em março deste ano, 50 estabelecimentos foram roubados em Niterói. Desse total de ocorrências, 20 foram registradas em Icaraí, um dos bairros mais nobres da cidade.

Sobretudo nos meses de fevereiro e março, cenas de bandidos armados com pistolas e fuzis foram vistas com frequência em bares e restaurantes do bairro. As situações eram semelhantes: criminosos armados com pistolas e fuzis desciam de um carro, rendiam os clientes nas mesas e calçadas, pegavam celulares e carteiras, voltavam ao veículo e fugiam.

Certos detalhes dessas ações chamaram a atenção.

“Os bandidos usavam armas pesadas e caras. Cada fuzil usado por eles para cometerem esses crimes é vendido no mercado negro por preços que variam entre R$ 40 mil e R$ 50 mil. Não faz o menor sentido utilizar esse tipo de armamento para roubar três ou quatro celulares e mais R$ 300 ou R$ 400 dos clientes”, narra o vereador.

“Essa matemática não faz o menor sentido. Por que usar armas tão caras para ter um lucro tão irrisório? Onde está o retorno desse tipo de ação? Para mim, é evidente que o ganho financeiro não está no assalto em si, mas na sensação de medo disseminada após os crimes. Conversei com os donos desses bares assaltados e vários me disseram que, pouco depois dos roubos, homens armados e à paisana se apresentaram para oferecer serviços de segurança. E é claro, muitos aceitaram. Não dá para não imaginar que boa parte daqueles roubos aconteceu por articulação de milicianos. Cometem o crime e, logo em seguida, oferecem segurança”, explicou o vereador.

Ameaças a condomínios

O modo de operar da milícia em Niterói não foi aplicado apenas no comércio.

“Síndicos de prédios da Zona Sul da cidade relataram aqui na Câmara terem sido procurados e extorquidos por esses indivíduos. ‘Você tem que pagar segurança! Do contrário, os moradores, seus condôminos, serão assaltados!’, eles afirmaram. É dessa forma que as coisas acontecem aqui: cria-se pânico na população para, logo em seguida, oferecer segurança”.

Avenida Central

A Avenida Ewerton Xavier – conhecida pelos moradores de Niterói por seu nome mais antigo, Avenida Central – tem quase sete quilômetros de extensão. Congestionada na maioria dos horários, a via liga os bairros de Itaipu e Várzea das Moças. Cortada por 48 ruas, é um dos principais corredores viários da Região Oceânica da cidade.

É no entorno da avenida que grupos milicianos impõem normas bastante duras aos moradores e comerciantes – sobretudo no que se refere ao controle da venda de gás e assinaturas de internet e TV fechada, além dos já conhecidos pagamentos por proteção. Quem se recusa a contribuir, sofre as consequências.

Em janeiro deste ano, um depósito de gás em Itaipu foi atacado a tiros. O motivo, segundo investigadores: os proprietários se recusaram a pagar uma taxa de segurança de R$ 3 mil cobrada pelos bandidos.

No dia 9 daquele mês, a Ligue Gás, localizada na Avenida Central e única revendedora autorizada da Liquigás – subsidiária da Petrobras – publicou em seu perfil em uma rede social que passaria a fazer o atendimento apenas na portaria, suspendendo os serviços de entrega.

Dois entregadores da revenda haviam sido sequestrados pelos criminosos. Eles ameaçaram queimar os trabalhadores no interior dos caminhões de distribuição.

Em abril, quatro integrantes do grupo responsável pelo ataque foram presos e levados à Justiça – três, no entanto, permanecem foragidos e, segundo moradores da região ouvidos pelo G1, ainda atuam no local.

“São milicianos ligados a traficantes que agem aqui na Região Oceânica. Ganham com o lucro da venda de drogas, que em tese proibiriam, e também com a cobrança de taxas de proteção. Fazem o mesmo com internet e TV por assinatura. A maior parte das pessoas que moram aqui sabe disso, mas prefere ficar em silêncio”, disse um morador da região, que pediu anonimato.

Escolas na mira

Segundo o vereador Sandro Araújo, até a educação sofre com o poder paralelo.

“Na mesma região, há escolas particulares que fazem pagamentos mensais a grupos milicianos para continuarem funcionando. Já houve até ameaças de sequestros de pais e alunos (…) Os locais próximos à Avenida Central são os pontos críticos da ação miliciana na Região Oceânica.”

A especialista em segurança pública Jacqueline Muniz, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), vê as milícias como “agências reguladoras do crime”, como uma “indústria que maximiza o medo” para vender segurança.

“Os negócios da corrupção vão estar onde se possa extorquir – tanto faz se é em uma comunidade popular, em um bairro periférico ou em um bairro de alta classe média. O que acontece no Rio de Janeiro, e também em Niterói, é uma apropriação predatória e particularista dos recursos públicos de segurança para fins privados”, explicou. “Ninguém faz parte de uma milícia por motivos ideológicos.”

Agentes públicos envolvidos

O vereador à frente da CPI diz não ter dúvidas do envolvimento de agentes públicos com o crime organizado.

“Não posso dizer que é policial A, policial B, policial de determinada polícia, mas que existem agentes públicos coniventes com essa prática, disso não tenho a menor dúvida. Por que, para um indivíduo chegar em um comerciante do Centro, em plena luz do dia, e obrigá-lo a vender uma mercadoria ilegal, é óbvio que existe a conivência de agentes públicos. Temos que investigar e descobrir quem são”, diz o vereador.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Polícia Militar informou que o comando do 12º BPM (Niterói) não recebeu nenhuma denúncia sobre a ação de grupos milicianos na cidade.

O G1 questionou a Polícia Civil se as delegacias das respectivas áreas – 76ª DP (Centro), 77ª DP (Icaraí) e 81ª DP (Itaipu) – têm investigações em andamento sobre a ação desses grupos criminosos na cidade. Até a última atualização desta reportagem, não houve resposta.

Fonte: G1

 

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