Mais do mesmo na segurança pública

25 de julho de 2017

 

No dia 19 de julho, dois delegados de polícia publicaram neste blog o artigo “Novo modelo de polícia sem investimento e meritocracia é falácia”, na tentativa de defender um modelo de polícia vigente no Brasil e em poucos países periféricos, considerado ultrapassado em lugares onde os índices de sucesso das investigações causam constrangimento aos operadores de segurança pública no Brasil.

Essa estrutura claramente ineficiente resiste às necessárias reformas, graças à atuação de entidades representativas que não poupam esforços em tentar manter e ampliar os poderes institucionais do cargo, como ocorreu no processo de aprovação da Lei nº 12.830/2013 (conhecida como “lei das excelências”) e Lei nº 13.047/2014, que tornou privativo dos delegados o cargo diretor-geral da Polícia Federal. Na prática, aquelas leis não trouxeram qualquer solução para a crise das instituições policiais ou para o falido modelo de segurança pública brasileiro.

Os esforços das entidades de delegados atualmente estão voltados para a aprovação da PEC-412, que atende apenas aos interesses corporativos dos ocupantes do cargo de delegado, um dos cinco que compõem a carreira policial federal, garantindo-lhes, por exemplo, a possibilidade de fixação dos próprios vencimentos. Nada sobre a alteração da estrutura ineficiente da investigação criminal no Brasil.

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Na visão dos articulistas, o modelo de uma carreira única não passaria de um delírio quixotesco defendido por uma “minoria de sindicalistas”. No entanto, omitem a realidade de polícias que já permitem a ascensão profissional desde a base da carreira, em países como Alemanha, Chile, Estados Unidos, França, Portugal, Reino Unido, entre outros.

Nesses países, onde os índices de elucidação criminal contrastam com as vergonhosas estatísticas brasileiras, a investigação criminal não tem o engessamento “judicialiesco” do inquérito policial e não se exige dos chefes de polícia a formação exclusiva em Direito.

Lá, a preocupação das instituições policiais é com a produção de provas válidas, através de métodos e técnicas baseados no conhecimento científico e multidisciplinar. O anteparo jurídico da investigação é feito pelo Ministério Público e por juízes de garantias, não por chefes de polícia, que por aqui se preocupam mais com correntes jurisprudenciais do que com as técnicas investigativas e a qualidade das provas.

A estruturação em carreira única é defendida não só pela maioria dos policiais, como também por estudiosos em segurança pública, como José Luiz Ratton, Luiz Eduardo Soares, Michel Misse, Renato Sérgio de Lima, Ricardo Balestreri, entre outros.

Aliás, a profunda insatisfação dos policiais com o modelo de carreira adotado no Brasil não é novidade. Em 2009, uma pesquisa feita pela secretaria nacional de Segurança Pública (Senasp), com policiais militares, civis, rodoviários e federais, bombeiros, guardas municipais e agentes penitenciários, mostrou que, em sua maioria, esses profissionais “desejam mudanças institucionais profundas, querem novas polícias e não concordam com o atual modelo organizacional. A mesma enquete, por outro lado, constatou que “se tornar promotor, procurador e juiz está nos planos – ao menos nos sonhos – de alguns delegados”.

Entre outubro de 2015 e março de 2016, o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, realizou um debate on-line, por meio de uma plataforma virtual intitulada “Mudamos” e por uma página no Facebook, com o objetivo de detectar os pontos de vista de diversos agentes sociais e construir um debate de propostas de mudança para arquitetura institucional do sistema brasileiro de segurança pública.

Motivado pela Proposta de Emenda Constitucional 51/2013, o debate contou com a participação de policiais militares, membros do Judiciário, delegados, investigadores e guardas municipais, profissionais do terceiro setor, da educação e da saúde. O tema que contou com maior participação foi a “carreira única”, em que a maioria dos participantes se posicionou favoravelmente a esse modelo.

Em nenhuma organização séria, um profissional qualificado e experiente seria fadado a passar cerca de 30 anos sem a perspectiva de ascensão profissional, pois isso se traduziria em desmotivação e consequente queda de produtividade. No entanto, na ideia equivocada dos delegados, os policiais brasileiros estariam almejando posições de chefia apenas pelo decurso do tempo, sem a experiência, a formação superior, o conhecimento e a titulação, que legitimassem a ocupação de postos de chefia.

É pela falta de perspectiva que policiais experientes e qualificados, graduados em diversas áreas do conhecimento, após anos de dedicação à investigação criminal, escolhem trabalhar em setores burocráticos. Isto porque não importa o quanto se dediquem: serão sempre chefiados por um delegado, ainda que recém-ingresso na corporação.

A grande falha do modelo brasileiro é a supervalorização da atividade jurídica, em detrimento do conhecimento técnico e científico. Na fase policial da persecução criminal, a análise jurídica é uma atividade meramente instrumental, pois o que realmente possibilita a coleta de provas é o conhecimento multidisciplinar dos fatos investigados.

O saber jurídico, por si só, não é suficiente, por exemplo, para a detecção de uma fraude contábil, um dano ambiental, ou um crime cibernético. Para essas atividades, são requeridas formações acadêmicas, conhecimentos, habilidades e experiências específicas, fora do domínio exclusivo do bacharel em Direito.

É evidente que o conhecimento da lei deve balizar a atuação de todo e qualquer agente público, pois a atuação do Estado afeta a esfera individual não apenas pela ação da polícia. Todo e qualquer policial toma, diuturnamente, uma série de decisões que repercutem diretamente em direitos fundamentais dos cidadãos, mas não a partir do conforto dos gabinetes, e sim pelo contato com a realidade das ruas, com os subterrâneos do sistema financeiro e do submundo da política. De forma diversa do que tentaram fazer crer os autores do texto, o que torna efetiva uma prisão feita nas ruas não é a formalização do auto de prisão em flagrante pelo delegado, mas a homologação do ato pelo juiz. No modelo atual, fica evidente a excessiva burocratização dos atos policiais, o que gera trabalho desnecessário e, consequentemente, ineficiência.

Afirmar que o desejo de mudança vem de uma “minoria de sindicalistas” é uma atitude que demonstra a prepotência como alguns participantes desse debate se postam diante do conjunto das corporações policiais. Desqualificam o ponto de vista dos demais profissionais e se apoiam no surrado discurso de que o problema da polícia está na falta de recursos materiais e financeiros. Omitem o fato de que os investimentos nas polícias cresceram vertiginosamente nas últimas décadas.

Dados do “Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2016” mostram que em 2010 foram gastos R$ 50 bilhões em segurança pública, enquanto em 2003 este valor foi menos da metade, R$ 22,6 bilhões. Em 2015, os estados e a União gastaram R$ 76,1 bilhões na área, 11,6% a mais que em 2014, quando os gastos somaram R$ 68,2 bilhões. Além de gastar muito, gestores formados exclusivamente em Direito gastam mal. A solução para a segurança pública não está na velha fórmula do “mais do mesmo”.

Comparar as atividades desempenhadas por agentes e delegados com as exercidas por auxiliares de enfermagem e médicos, pedreiros e engenheiros, ou sustentar que haveria paralelo entre a atuação daqueles profissionais com a relação entre serventuários da Justiça e juízes/promotores é desonestidade intelectual e não passa de retórica; desconsidera a natureza da investigação criminal e supervaloriza o conhecimento jurídico na fase policial da investigação criminal.

A verdadeira meritocracia não é demonstrada pela aprovação em concurso público que mede conhecimentos jurídicos, com vagas ocupadas, muitas vezes, por jovens que encontram no cargo de chefe de polícia o seu primeiro emprego e – como novatos -, precisam se apoiar na experiência de outros policiais para a condução dos trabalhos.

A Constituição Federal já estabelece que a Polícia Federal é estruturada em “carreira” (no singular), sem estabelecer relação de hierarquia entre os ocupantes de seus cinco cargos. Assim, falta regulamentar esse dispositivo para que prevaleça a vontade do constituinte. Ademais, a Administração Pública já dispõe de instrumentos suficientes para estruturar tecnicamente uma carreira, sem que seja necessário invocar a anedótica figura do “delegado calça-curta” para atacar a ocupação de postos-chave, por critérios políticos ou pessoais. Defender esse ponto de vista não significa rechaçar a importância do concurso público, que seria o meio de ingresso numa carreira que teria início, meio e fim, o que já ocorre em outras carreiras, inclusive no Brasil. Ou alguém já ouviu falar em concurso para desembargador ou general?

* Antônio José Moreira da Silva é mestrando em Ciências Humanas pela UFFS, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UCAM e em Controle da Gestão Pública Municipal pela UFSC. Graduado em Direito pela UFU. É agente de Polícia Federal, que atuou em operações de inteligência e combate a organizações criminosas.

* Vladimir de Paula Brito é doutor em Ciência da Informação pela UFMG. Especialista em inteligência de estado e inteligência de segurança pública pela Escola Superior do Ministério Público/MG. Especialista em sistemas de banco de dados. Graduado em biblioteconomia pela ECI/UFMG. Membro do Centro de Estudo de Inteligência Governamental. É diretor da Associação Internacional para Estudos de Segurança e Inteligência (INASIS) e membro do Centro de Estudo de Inteligência Governamental (CEEIG/UFMG). É agente de Polícia Federal, com atuação em operações de inteligência e combate a organizações criminosas.

 

 

*Fonte:  Jornal Estadão

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